Ciclo escalada chega ao norte da cordilheira boliviana


A cicloescalada vem avançando continuamente e com alegria através desta cadeia de montanhas que se demonstra cada vez mais impressionante. Desde janeiro de 2009 foram pedalados cerca de 8.000 km pelas mais remotas rutas da Argentina, Chile e Bolívia, que levaram as mais belas e selvagens paisagens deste planeta, onde até o momento em 20 sítios, foi possível desfrutar de muitas distintas e incríveis escaladas. (A linha vermelha no mapa ao lado ilustra o trajeto percorrido e os pontos verdes os sítios de escalada visitados.)

Viver diariamente em harmonia com a mais pura natureza estando no mais íntimo contato, e podendo apreciar as suas mais diversas expressoes, é um previlégio que alimenta a alma e nos ensina um pouco sobre quem somos e onde estamos, e mostra verdadeiros sentidos da vida.

A forma de simplicidade e autônomia com que vêm sendo conduzida esta experiência a torna mais dura, mas também enriquece e aprofunda esta vivência, que se passa a dar muito mais com a natureza do que com a sociedade. A foto abaixo ilustra a logística empregada e a grande quantidade de viveres necessários.



A cicloescalada agora está de descanso em La Paz, adquirindo energias para os próximos passos, entre visitas aos sítios de escaladas da regiao e descobertas de um novo país, o grande Peru. Hasta la próxima!

Oruro - lugar de escaladas e grandes montanhas

Enfim cheguei a uma regiao mais urbanizada da Bolívia, em Carahuara de Carangas, onde foi possível conseguir uma variedade de alimentos um pouco maior para me manter no bom sítio de escalada da zona. Muito melhor do que poder se alimentar um pouco melhor foi encontrar bons novos amigos, os franceses Lionel e Véronique, que recém começavam uma viagem com o mesmo objetivo da minha, conhecer lugares remotos, escalar nos sítios de escalada e subir montanhas nevadas, e como nao poderia deixar de ser carregar uma carga tremenda.
Nos juntamos no povoado e por vários dias compartimos felizes momentos. Em pouco estávamos sacando as coisas dos alforges e começando a escalar. Durante dois dias estivémos motivados a full, escalando cerca de 10 lindas rutas na incrível rocha vulcânica, entre 5º e 7c+. Infelizmente os militares que atuam na regiao usam a área para treinamento, pichando, sujando e tirando parte do encanto deste belo sítio. Durante os dias que estivémos aí a chuva esteve presente e coloriu o céu, mas nao nos impediu de estar colgados, e por sorte tivemos disponível o que foi uma das melhores moradas desses tempos, uma grande e confortável gruta.
Logo partimos todos juntos a Chacunpulco, mais um sítio de escalada de bolders a cerca de 40 km de Curahuara de Carangas em direçao ao Chile. Aí um mar de rochas vulcânicas esculpidas pelo tempo forma um paraíso para escaladores. Durante dois dias, a 4.200m snm, fizemos muita força provando projetos e tentando novas linhas.
De cabeça feita parti para o próximo passo junto com meus novos amigos, tentar a ascençao dos grandes avuelos, os nevados Sajama, a maior montanha da Bolívia com 6.542m snm, e do Parinacota com seus 6.340m snm, usando a bici para aproximaçao.
Acabei me desencontrando do casal e fui solo ao Sajama chegando em três horas ao campo base. Me sentindo bem, decidi fazer um ataque daí direto ao cume, sem passar uma noite no campo alto para aclimataçao. A ascençao através das íngrimes vertentes arenosas foi dura, mas logo estava acima dos 6.000m, onde começou a parte técnica da escalada. Depois de passar uma parede de rochas podres, cheguei ao gelo e as esperadas penitentes, que formavam degrais ou cascatas de gelo de cerca de 2 metros de altura. Passando uma a uma fui avançando até o momento em que se abriram formando profundas e perigosas gretas. Já estando tarde e se tratando de terreno perigoso, juntando com minha pouca experiência neste ambiente, decidi sabiamente baixar a 200 metros do cume. Em 2 horas estava novamente no campo base a salvo vendo os últimos raios de sol do dia banhando esta montanha impressionante, agradecendo pela profunda interaçao que me proporcinou.
Baixei do campo base e fui relaxar nas águas termais abeixo de um céu forrado de estrelas. Já descansado e reunido com meus amigos, partimos para o próximo desafio, a aproximaçao e ascençao do nevado e negro Parinacota.
Nos custou vencer os areiais até o campo base, e decidimos seguir a pé. Ao final do dia já esgotados, armamos nosso campo base a cerca 4.800m snm. As três da madrugada iluminados pela lua minguante, iniciamos a caminhar cruzando ao escuro alguns vales. Quando chegamos ao campo alto e o sol começou a nos fornecer calor, Véronique começou a se sentir mal e tiveram que descer. Novamente segui em solitário, vencendo os zig-zags e os areiais intermináveis e as penitentes, e as 13 hrs da tarde, já esgotado e sentindo dores de cabeça, atingi a cratera e o cume deste grande vulcao. Realizado era hora de retornar o longo caminho, e às 8 hrs da noite, completamente esgotado depois de 17 horas de atividade, estava de volta onde havia deixado a bicicleta, onde em meio ao forte vento, com sede, fome e feliz, em segundos estava metido no saco dormindo.
Uma experiência surreal que alimentou a alma e o espírito. O que restou foi agradecer aos grandes avuelos por terem permitido uma interaçao tao profunda.
Realizado era hora de enfrentar o próximo desafio, muito mais duro que estar na natureza selvagem, encarar La Paz, a louca capital da Bolívia.

Travessia do encantador Altiplano Boliviano

Enfim cruzei a frontera da tao esperada Bolívia, país distinto, onde certamente tudo mudaria. Depois de já mais de 2 meses acima dos 3600m snm, com exceçao de Sao Pedro do Atacama, retornei aos cerca de 4000m depois de cruzar o passo de Hito Cajon.
Adentrei por uma das regioes mais desérticas e selvagens deste país, onde logo fui recebido cordialmente pelo guarda-parque da Reserva de Fauna Andina Eduardo Avaroa. Além de aproveitar para descansar um pouco na sede da Reserva, daí foi possível fazer um ataque a montanha que vem acompanhando meu caminho durante muito tempo, o grande vulcao Lincancahur. Em 12 horas de atividade em solitário, me aproximando em bici e encarando a inexplorada crista sul, recebi o permisso de cheguar ao seu cume de 5.930 m snm, e desfrutar de uma das paisagens mais incríveis de toda viagem.
Segui adiante ao norte, encarando o que se revelou em uma das partes mais duras da cicloescalada, empurrando a bici através de intermináveis areiais à até 4900m snm e lutando com nevascas atípicas, além de uma logística de água para vários dias. Mas fui recompensado pelas mais incríveis paisagens, das lagunas altiplânicas com suas cores que variam do branco ao verde e vermelho repletas de flamingos, das montanhas laranjadas, do salar do Chalviri e suas águas termais, dos geisers em atividade, das formaçoes geológicas incríveis. Infelizmente a Reserva nao conta com eficiente sistema de fiscalizaçao, necessário para adequar os prejudiciais safaris turísticos dos 4X4.
Depois de muitos dias lutando com as dificuldades impostas pelo meio, enfim cheguei em mais uma zona de escalada, o incrível Valle de las Rocas, um mar de rochas vulcânicas que se extende por mais de 10 km e forma um paraíso de para escalada de bolders. Já sem mantimentos nao pude escalar muito e me dirigi enfim para a civilizaçao boliviana.
Foi aí que comecei a me deparar com o que é a Bolívia e o boliviano. País muito distinto dos outros visitados até entao, que resiste ou nao acompanha o capitalismo e o avançado processo de globalizaçao que ja toma conta do mundo. Pouco existem produtos industrializados, mas dos alimentos produzidos na zona cálida, quase nada chega ao altiplano, que se alimentam somente a base do que produzem, raramente algo além de quinoa, papas e carne de llama, muito adaptados aí. Mas por trás de um mercado inocente, uma rica cultura foi cada vez mais se revelando.
Foi um incrível contraste conhecer uma cultura que resiste até hoje a colonizaçao, seja cultivando de sua forma suas sementes e seus alimentos que le deram vitalidade desde o princípio, seja falando seus idiomas originais como Quechua e Aymaraia.
É lindo de ver as mulheres paradas como duendes em meio ao altiplano, com suas roupas coloridas, seus tradicionais chapeuzinhos de onde saem longas tranças, e quase sempre com um pedaço de pele de llama produzindo fios. Esboçam sempre um sorriso e falam meia duzia de palavras em seus idiomas; o que resta é sorrir de novo.
Segui por pequenos poblitos raramente com mais de 500 habitantes, de gente muito amavel e com as piores estradas do mundo, San Augustin, San Juan, San Martim, Chuvica. Cruzei o impressinante salar do Uyuni, onde pela terceira vez me perdi em meio ao mar branco e tive que fazer mais de 100 km para corrigir a rota. Por aqui nao existem placas indicativas e muitas vezes as coordenadas que consigo no gps estao erradas. Aprendi, seguir a intuicao é melhor que nada. Muitas vezes o caminho tem somente uma leve marca antiga de camionete ou um rastro de bici, e quando pensa que esta no caminho certo, este divide em 3 ou 4. Outro mundo, que ainda está distante do ocidente.
Depois do Uyuni e de dormir na linda isla incahuasi, dormindo em grutas ou nos campos abaixo dos céus mais estrelados que já vi, cheguei a Tohua e dando a volta num lindo vulcao cheguei a Salinas de Garci Mendoza. De aí a cidade fantasma de Concepçao de Belén às beras do salar de Ollague, depois Chipaya, Escara, Huahacalla, Opoqueri, Pomata e a amável Turco, e depois de um lindo caminho repleto de lindas escaladas de bolders, cheguei a Curahuara de Carangas, próximo sítio de escalada a se conhecer. Nesta cidade se consegui perceber pela primeira vez os traços da cultura ocidental, que acaba com tudo o que é de origem dos povos antigos que aqui viviam.
Bolívia é um país especial, onde além de suas incríveis belezas naturais é possível refletir para onde a sociedade está se encaminhando.

Cruzo ao atacama chileno - a escalar!

Se iniciou uma nova fase da ciclo escalada, onde retornei ao modo antigo, seguindo o caminho fisicamente em solitário. A motivaçao que havia se ido retornou, e foi fundamental para enfrentar vários dias seguidos de fortes ventos e completa solidao ao cruzar o passo sico em direçao a Chile, onde atingi mais de 4800m snm.
Depois de 5 dias sem nenhuma presença humana, enfim cheguei a esperada Quebrada Nascimento, próxima a Socaire. Por sorte pude encontrar e compartilhar bons dias com os novos amigos de Santiago, entre escaladas e uma ida a Reserva Nacional de los Flamencos e suas lagunas altiplânicas Miñique e Miscanti.
Meus parceiros se foram, e por mais dois dias pude aproveitar um pouco do grande potencial da quebrada como zona de escalada, entre bolders e escaladas em solitário.
Chegou o momento de voltar a civilizaçao, e aproveitando o já desconhecido asfalto pude chegar rapidamente a turística Sao Pedro do Atacama. Aí meu destino se cruzou com o da família dos queridos amigos Marcelo, Yuen e do pequeno Noah. Juntos fomos escalar na quebrada de Toconao, boas rutas desportivas e pequenas e perigosas fissuras.
Antes de me despedir dos meus novos irmaos, fui conhecer os belos lugares turísticos da regiao, a piedra de la coca e o valle de la luna. Abastecido de boas energias, segui carretera adiante sentido passo jama, e depois de subir quase 2000 m de altitude guardado pelo belo vulcao Lincancahur, entrei na Bolívia em Hito Cajon. Momento a tempo esperado, novo país, novas experiências.

Norte da Argentina pela ruta mais alta das américas até o vale de Tuggzle

Foi nesta etapa da ciclo escalada onde nos deparamos com grandes desafios impostos pela vida. Partimos da regiao dos mais ricos vinhos argentinos, Cafayate, e pela desértica ruta 40 rumamos em direçao ao que todos dizem ser o passo em carretera mais alto das américas.
Através do Valle Calchaqui, onde o isolamento preserva a autêntica e colorida cultura antiga, encontramos paisagens incríveis esculpidas pelo drástico clima. Passamos pelos povoados de Cachi e La Poma, a partir de onde começamos uma batalha física, mental e espiritual de alguns dias até atingir a plenitude, no passo de Abra Acay, onde diferente do que diz o cartel, chegamos a 4.960 m snm.
Iluminados pelo lindo entardecer baixamos até Santo Antônio de Los Cobres, e de aí um bate volta até Salta, a compartilhar filosofias com nossos novos amigos artesanos.
De volta a Los Cobres, desgastados e sofrendo com a altitude, fomos ao próximo destino de escalada, o remoto vale formado pelo vulcao Tuggzle. As lavas vulcânicas hoje se transformaram em um paraíso de bolders, e os tremores abriram lindas fissuras, onde durante alguns dias pudemos desfrutar de desoxigenadas escaladas, revezadas com banhos nas termas e tratamento do furúnculo que quase atravessou a perna de Turco. Também aos pés do grande vulcao aproveitamos a oferendar nossa grande mae e agradecer por tudo.
Um pouco desmotivados seguimos à diante em direçao ao Chile, através de um atalho sobre areiais a mais de 4.800m snm e que derrepente se terminou. Sem caminho e com muito custo conseguimos descer ao fundo do vale.
Foi neste momento que o meu destino se separou do do meu hermano, que seguiu sua intuiçao e foi ao encontro de sua felicidade. Foram mais de 2 meses e milhares de quilômetros de parceria, compartilhando sensaçoes únicas e que nos ensinou muito sobre o espírito humano. Gracias hermanito e seguimos na conexao.