Travessia da carreteira Austral – De Villa O´Higgins à Bariloche


25 de abril a 22 de maio de 2010

Despertei com algumas gotas de água no rosto, as primeiras luzes do dia mostravam um céu escuro e carregado. Iniciou-se uma fina e gelada chuva, que aceitei com tranqüilidade sabendo que ela me acompanharia durante toda esta travessia, nesta região que é uma das mais úmidas do mundo, tendo registradas precipitações de até 4.500 mm anuais. Seriam cerca de 1.500 km em plena cordilheira, através de remotas e desabitadas regiões, por vales profundos, altas montanhas, massas de gelo, lagos, enseadas marítimas e florestas densas, percorrendo alguns dos piores caminhos de até então.

Era cedo quando peguei estrada e cheguei à vila O´Higgins, um pequeno e isolado povoado com seus 200 habitantes. Encontrei os amigos Maurício e Sara, dois gentis chilenos amantes da natureza que conheci e muito me identifiquei na travessia do lago O´Higgins. Pronto me chamaram à casa, a tomar algo quente neste gelado e chuvoso dia. Depois de muita conversa e um pouco de wiski para esquentar, me despedi e segui viagem.


Não podia acreditar na tamanha beleza deste lugar, montanhas nevadas, rios, brejos e lagos por todos lados, a vegetação de outono vermelha, laranja, amarela, verde, cachoeiras despencando dos penhascos sobre a estrada. Não me importava o lento avanço, as pedras do caminho, as subidas e descidas intermináveis, a chuva intermitente. Estava desfrutando intensamente de estar nestes preservados e maravilhosos confins das Américas.
O caminho era duro, a chuva seguia forte, e com ao grande frio que fazia era doloroso agüentar muitas horas diárias viajando, tardando três dias para percorrer os pouco mais de 100 km até o Porto Rio Bravo. No fim da tarde apontou a barcaça na enseada, e foi uma deliciosa sensação quando entrei na cabine com calefação. Necessitava secar minhas coisas que já estavam completamente ensopadas. Cruzamos o canal até Porto Yungay, 3 casas perdidas no meio do nada, onde somente viviam 3 militares. Por sorte na praia havia um galpão abandonado, que embora frio e molhado serviria para fazer um fogo e estar mais abrigado. Agradecia e dava imenso valor por ter encontrado um teto e sair debaixo da chuva, que já começava a me consumir psicologicamente. Mas ainda muito melhor que isso, foi o que se passou nos minutos seguintes, quando Raul, tripulante da embarcação, se acercou e me convidou a descansar em uma das casas que cuidava, com calefação, cama, cozinha, banheiro.
Vale do rio Baker

Monte San Lorenzo
Mas não poderia me colgar, pois já vinha escasseando os mantimentos e ainda me faltavam 150 km de duros caminhos até o próximo povoado onde poderia me reabastecer. Descansei e sequei as coisas em um dia e mesmo com a chuva incessante e o frio, retornei a estrada. Com muito esforço e à base de farinha tostada, consegui alcançar Cochrane em dois dias, deixando as ladeiras do suspiro, do barreiras, a desembocadura de rio Baker com o mar e o monte San Lorenzo para trás. Sentia muito frio e novamente tinha tudo completamente molhado, mas pude contar mais uma vez com a solidariedade do querido povo desta zona, ao ser convidado a me abrigar no galpão da humilde casa do Sr. Julian. Coloquei uma roupa seca e sequei a molhada na estufa, tomei e comi algo quente. Passei o domingo com ele na função de buscar e preparar lenha, admirado como vive feliz e escutando mil e um causos, desde pouso de naves extraterrestres até de suas teorias. Contava que não sabia como os russos ainda não o haviam descoberto. Um personagem.

Finalmente amanheceu um lindo dia de céu azul com tudo branco pela forte geada, depois de quase dez dias sem parar de chover. Sequei o que faltava, comprei comida para o próximo longo trecho e segui caminho. Logo alcancei o sinuoso vale do rio Baker novamente, seguindo-o por sua margem impressionado com a paisagem, a sua cor turquesa, o vermelho intenso da vegetação, as montanhas nevadas. Passei o belo lago e o porto Berthrand, cruzei um passo e alcancei às margens do maior lago do Chile, o General Carreira. Se via a maior montanha da patagônia, o Cerro San Valentim próximo, e pelos intermináveis sobes e desces fui costeando o lago e atingi o pequeno povoado de Porto rio Tranquilo.

Lago Bertrand
Lago General Carrera
Cerro San Valentim

Se iniciou um longo trecho de bosques em regeneração, e onde não se havia transformado em campos, se via os indícios de um grande incêndio descontrolado que na década de 40 queimou por mais de 5 anos ininterruptos grande parte da patagônia. Por sorte alguns vales muito úmidos e de difícil acesso foram salvos do incêndio, e outros conseguiram se restabelecer, mantendo a exuberância da floresta, que se não fosse pelo frio podia-se confundir com o trópico quente.

Cerro Castillo
A chuva que havia dado um dia de trégua retornou. Cruzei um alto passo nevado até atingir o vale do rio Ibañez e seu cemitério de árvores criado por uma recente e grande erupção do vulcão Hudson. Paredes perfeitas para escalada e ainda virgens estavam por todos lados, e formavam um lindo ambiente em contraste com o destacado cerro Castillo. Ao fim do dia alcancei a vila aos seus pés e o início do pavimento. Mais um alto passo com quase 900 m de desnível que estava todo coberto de neve, e estava dentro de profundos vales descendo em direção a primeira cidade maior desta carreteira e ponto de escalada, Coyhaique.

Acolhimento da Sr. Maria e Don Hernan I
Com o forte vento que soprava da pampa não consegui alcançá-la neste dia, mas antes que eu imaginasse estava sendo recebido na cidade pelos pais do grande amigo Hernan, como se fosse o neto que há muito tempo não retorna a casa. Estava na família sentindo o carinho e afeto que há muito tempo não sentia. Tinha um quarto, ducha quente, sopinha, pãozinho, comida, etc e etc da avó e à beira do fogão por todo o dia. Passei o dia das mães com a Senhora Maria e Sr. Hernan I, ela como que tendo um filho e eu uma mãe substituta. E pela segunda vez no ano pude falar com minha mãe verdadeira por telefone, uma alegria enorme.

Escalada em Ensenada
Por Coyhaique acabei ficando quase uma semana, ajudando um pouco na casa e sempre me juntando com os novos amigos que havia feito, Richard, Paula, Yerko e . Num dos únicos dias que não choveu fomos escalar pela região e pude conhecer 2 sítios, o belo cerro Mackay com seu sólido basalto e os conglomerados de enseada, algumas vias boas e duras.
Com a melhora do clima era hora de avançar e tentar a conclusão desta etapa, mais 800 km até Bariloche.

Desci o vale do Rio Simpson, subi o do rio Miñihuales, onde me estourou um pneu, mas por sorte tinha um reposto. Tornei a “descer” o vale do rio Cisnes, onde tive sorte de chegar sem chuva, mas a grande umidade do ar molhava tudo da mesma forma. Cruzei o duro passo Queulat por entre montanhas e glaciares e quando me dei conta estava diante de uma grande enseada. Segui acompanhando-a e quando faltavam 10 km a porto Puyuhuapi o pneu estourou mais uma vez. O que fazer? Acabei empurrando a bici até o povoado, onde para minha infelicidade não consegui um novo reposto. O jeito foi improvisar, e com um grande manchão pude seguir viagem em direção a La Junta. Passei a noite abrigado da chuva no banheiro do Parque Nacional Queulat, abandonado esta época do ano. Segui viagem e tudo parecia perfeito com o rápido avanço, mas quando parei para checar um ruído dei de cara com o pneu prestes a estourar novamente. Não me restou outra se não empurrar mais uma vez, abaixo de chuva e sem me poder me movimentar o suficiente para esquentar. Foram 20 km até La Junta, onde deixei meus últimos pesos chilenos em troca de um pneu.

Reserva Nacional Rio Simpson

Reserva Nacional Lago las Torres

Em um dia mais estava chegando a território conhecido por onde passei a pouco mais de 1 ano atrás, Villa Santa Lucia. Mesmo abaixo de chuva, como no ano passado, estava muito contente de estar ali. Parei comer algo na mesma parada de ônibus e me congelei um pouco, mas logo estava colocando o corpo a se aquecer novamente. Passei o lago Yelcho e Porto Ramirez, e iniciei a travessia da cordilheira subindo o precioso e forte rio Futaleufú. Encontrei um abrigo da chuva e no dia seguinte estava cruzando a aduana para Argentina, e pela margem do rio Grande alcancei a conhecida Trevellin. As irmãs da igreja me deram um lugar para passar a noite e secar minha roupa.

O próximo passo era cruzar o Parque Nacional dos Alerces, região de encantadora beleza que já havia percorrido ano passado em sentido contrário. Mas quando estava a caminho não acreditei quando vi a casa móvel dos Ser Semillas (WWW.sersemillas.org), um centro de cultura itinerante que vem viajando pela patagônia fazendo um lindo trabalho, e com quem havia me cruzado várias vezes mais ao sul. Mas deste vez fui ao encontro deles e fui muito bem recebido por Vladec e pelas Paulas, com quem compartilhei as melhores conversas dos últimos tempos, em uma afinidade de ideais e visões incrível. Pronto fui convidado a subir a bordo e a viajar junto até El Hoyo de Epuyén, pouco mais de 100 km adiante. Não tinha como não aceitar viver esta onda por dois dias. Nem os problemas na camionete antiga diminuíam nosso humor, e nada que os parafusos que carregava na bici não fossem capaz de resolver.

O ritmo em que viajavam era mais lento que o meu em bicicleta, e chegando ao Hoyo decidi seguir o pedaleio. Não antes de conhecer o contato dos Ser Semillas na zona, a rádio comunitária FM Alas, e um pouco de sua história, repleta de boa música e em defesa do patrimônio natural de todos. Até uma rápida entrevista dei a rádio. Mas era hora de chegar ao fim desta longa etapa, e estava determinado há neste mesmo dia percorrer os 160 km que me afastavam de Bariloche.

Foi um longo, molhado e gelado dia. Encontrei no caminho o alemão Michael, que com sua enorme e desorganizada bicicleta vem viajando a 4 anos pelo mundo (www.mike-on-bike.de). Subi parte do passo Steffens no maior papo com ele, até deixá-lo para trás quando caiu à noite. Já havia percorrido mais de 100 km e sentia as pernas cansadas, mas me sentia cada vez mais determinado em chegar neste dia, estar com os amigos, e não precisar mover-me no dia seguinte, custasse o que custasse. Por sorte a chuva acalmou depois de vila Marcardi. A enorme lua se destapou e iluminou o lago Mascardi e todas as montanhas cheias de neve da região, e cada vez mais motivado via a estrada ficar para trás. Entao alcancei o lago Gutierrez, desci a sua margem até vila dos Coihues, peguei a estrada antiga para o cerro Cathedral e não me acreditei quando caí no km 10 da Avenida Bustillo, às margens do grande lago Nahuel Huapi. Estava arrepiado por ter vencido este duro e último dia desta grande etapa em alto estilo, e antes que imaginei, às 9 horas da noite, em um estado lastimável, estava sendo novamente recebido no Hormigueiro, por Maty, Laura e Camila. Uma satisfação e um momento único, a recompensa por todo e qualquer sacrifício dos últimos meses. Um banho e uma comida quente e agora era só relaxar.