Travessia da carreteira Austral – De Villa O´Higgins à Bariloche


25 de abril a 22 de maio de 2010

Despertei com algumas gotas de água no rosto, as primeiras luzes do dia mostravam um céu escuro e carregado. Iniciou-se uma fina e gelada chuva, que aceitei com tranqüilidade sabendo que ela me acompanharia durante toda esta travessia, nesta região que é uma das mais úmidas do mundo, tendo registradas precipitações de até 4.500 mm anuais. Seriam cerca de 1.500 km em plena cordilheira, através de remotas e desabitadas regiões, por vales profundos, altas montanhas, massas de gelo, lagos, enseadas marítimas e florestas densas, percorrendo alguns dos piores caminhos de até então.

Era cedo quando peguei estrada e cheguei à vila O´Higgins, um pequeno e isolado povoado com seus 200 habitantes. Encontrei os amigos Maurício e Sara, dois gentis chilenos amantes da natureza que conheci e muito me identifiquei na travessia do lago O´Higgins. Pronto me chamaram à casa, a tomar algo quente neste gelado e chuvoso dia. Depois de muita conversa e um pouco de wiski para esquentar, me despedi e segui viagem.


Não podia acreditar na tamanha beleza deste lugar, montanhas nevadas, rios, brejos e lagos por todos lados, a vegetação de outono vermelha, laranja, amarela, verde, cachoeiras despencando dos penhascos sobre a estrada. Não me importava o lento avanço, as pedras do caminho, as subidas e descidas intermináveis, a chuva intermitente. Estava desfrutando intensamente de estar nestes preservados e maravilhosos confins das Américas.
O caminho era duro, a chuva seguia forte, e com ao grande frio que fazia era doloroso agüentar muitas horas diárias viajando, tardando três dias para percorrer os pouco mais de 100 km até o Porto Rio Bravo. No fim da tarde apontou a barcaça na enseada, e foi uma deliciosa sensação quando entrei na cabine com calefação. Necessitava secar minhas coisas que já estavam completamente ensopadas. Cruzamos o canal até Porto Yungay, 3 casas perdidas no meio do nada, onde somente viviam 3 militares. Por sorte na praia havia um galpão abandonado, que embora frio e molhado serviria para fazer um fogo e estar mais abrigado. Agradecia e dava imenso valor por ter encontrado um teto e sair debaixo da chuva, que já começava a me consumir psicologicamente. Mas ainda muito melhor que isso, foi o que se passou nos minutos seguintes, quando Raul, tripulante da embarcação, se acercou e me convidou a descansar em uma das casas que cuidava, com calefação, cama, cozinha, banheiro.
Vale do rio Baker

Monte San Lorenzo
Mas não poderia me colgar, pois já vinha escasseando os mantimentos e ainda me faltavam 150 km de duros caminhos até o próximo povoado onde poderia me reabastecer. Descansei e sequei as coisas em um dia e mesmo com a chuva incessante e o frio, retornei a estrada. Com muito esforço e à base de farinha tostada, consegui alcançar Cochrane em dois dias, deixando as ladeiras do suspiro, do barreiras, a desembocadura de rio Baker com o mar e o monte San Lorenzo para trás. Sentia muito frio e novamente tinha tudo completamente molhado, mas pude contar mais uma vez com a solidariedade do querido povo desta zona, ao ser convidado a me abrigar no galpão da humilde casa do Sr. Julian. Coloquei uma roupa seca e sequei a molhada na estufa, tomei e comi algo quente. Passei o domingo com ele na função de buscar e preparar lenha, admirado como vive feliz e escutando mil e um causos, desde pouso de naves extraterrestres até de suas teorias. Contava que não sabia como os russos ainda não o haviam descoberto. Um personagem.

Finalmente amanheceu um lindo dia de céu azul com tudo branco pela forte geada, depois de quase dez dias sem parar de chover. Sequei o que faltava, comprei comida para o próximo longo trecho e segui caminho. Logo alcancei o sinuoso vale do rio Baker novamente, seguindo-o por sua margem impressionado com a paisagem, a sua cor turquesa, o vermelho intenso da vegetação, as montanhas nevadas. Passei o belo lago e o porto Berthrand, cruzei um passo e alcancei às margens do maior lago do Chile, o General Carreira. Se via a maior montanha da patagônia, o Cerro San Valentim próximo, e pelos intermináveis sobes e desces fui costeando o lago e atingi o pequeno povoado de Porto rio Tranquilo.

Lago Bertrand
Lago General Carrera
Cerro San Valentim

Se iniciou um longo trecho de bosques em regeneração, e onde não se havia transformado em campos, se via os indícios de um grande incêndio descontrolado que na década de 40 queimou por mais de 5 anos ininterruptos grande parte da patagônia. Por sorte alguns vales muito úmidos e de difícil acesso foram salvos do incêndio, e outros conseguiram se restabelecer, mantendo a exuberância da floresta, que se não fosse pelo frio podia-se confundir com o trópico quente.

Cerro Castillo
A chuva que havia dado um dia de trégua retornou. Cruzei um alto passo nevado até atingir o vale do rio Ibañez e seu cemitério de árvores criado por uma recente e grande erupção do vulcão Hudson. Paredes perfeitas para escalada e ainda virgens estavam por todos lados, e formavam um lindo ambiente em contraste com o destacado cerro Castillo. Ao fim do dia alcancei a vila aos seus pés e o início do pavimento. Mais um alto passo com quase 900 m de desnível que estava todo coberto de neve, e estava dentro de profundos vales descendo em direção a primeira cidade maior desta carreteira e ponto de escalada, Coyhaique.

Acolhimento da Sr. Maria e Don Hernan I
Com o forte vento que soprava da pampa não consegui alcançá-la neste dia, mas antes que eu imaginasse estava sendo recebido na cidade pelos pais do grande amigo Hernan, como se fosse o neto que há muito tempo não retorna a casa. Estava na família sentindo o carinho e afeto que há muito tempo não sentia. Tinha um quarto, ducha quente, sopinha, pãozinho, comida, etc e etc da avó e à beira do fogão por todo o dia. Passei o dia das mães com a Senhora Maria e Sr. Hernan I, ela como que tendo um filho e eu uma mãe substituta. E pela segunda vez no ano pude falar com minha mãe verdadeira por telefone, uma alegria enorme.

Escalada em Ensenada
Por Coyhaique acabei ficando quase uma semana, ajudando um pouco na casa e sempre me juntando com os novos amigos que havia feito, Richard, Paula, Yerko e . Num dos únicos dias que não choveu fomos escalar pela região e pude conhecer 2 sítios, o belo cerro Mackay com seu sólido basalto e os conglomerados de enseada, algumas vias boas e duras.
Com a melhora do clima era hora de avançar e tentar a conclusão desta etapa, mais 800 km até Bariloche.

Desci o vale do Rio Simpson, subi o do rio Miñihuales, onde me estourou um pneu, mas por sorte tinha um reposto. Tornei a “descer” o vale do rio Cisnes, onde tive sorte de chegar sem chuva, mas a grande umidade do ar molhava tudo da mesma forma. Cruzei o duro passo Queulat por entre montanhas e glaciares e quando me dei conta estava diante de uma grande enseada. Segui acompanhando-a e quando faltavam 10 km a porto Puyuhuapi o pneu estourou mais uma vez. O que fazer? Acabei empurrando a bici até o povoado, onde para minha infelicidade não consegui um novo reposto. O jeito foi improvisar, e com um grande manchão pude seguir viagem em direção a La Junta. Passei a noite abrigado da chuva no banheiro do Parque Nacional Queulat, abandonado esta época do ano. Segui viagem e tudo parecia perfeito com o rápido avanço, mas quando parei para checar um ruído dei de cara com o pneu prestes a estourar novamente. Não me restou outra se não empurrar mais uma vez, abaixo de chuva e sem me poder me movimentar o suficiente para esquentar. Foram 20 km até La Junta, onde deixei meus últimos pesos chilenos em troca de um pneu.

Reserva Nacional Rio Simpson

Reserva Nacional Lago las Torres

Em um dia mais estava chegando a território conhecido por onde passei a pouco mais de 1 ano atrás, Villa Santa Lucia. Mesmo abaixo de chuva, como no ano passado, estava muito contente de estar ali. Parei comer algo na mesma parada de ônibus e me congelei um pouco, mas logo estava colocando o corpo a se aquecer novamente. Passei o lago Yelcho e Porto Ramirez, e iniciei a travessia da cordilheira subindo o precioso e forte rio Futaleufú. Encontrei um abrigo da chuva e no dia seguinte estava cruzando a aduana para Argentina, e pela margem do rio Grande alcancei a conhecida Trevellin. As irmãs da igreja me deram um lugar para passar a noite e secar minha roupa.

O próximo passo era cruzar o Parque Nacional dos Alerces, região de encantadora beleza que já havia percorrido ano passado em sentido contrário. Mas quando estava a caminho não acreditei quando vi a casa móvel dos Ser Semillas (WWW.sersemillas.org), um centro de cultura itinerante que vem viajando pela patagônia fazendo um lindo trabalho, e com quem havia me cruzado várias vezes mais ao sul. Mas deste vez fui ao encontro deles e fui muito bem recebido por Vladec e pelas Paulas, com quem compartilhei as melhores conversas dos últimos tempos, em uma afinidade de ideais e visões incrível. Pronto fui convidado a subir a bordo e a viajar junto até El Hoyo de Epuyén, pouco mais de 100 km adiante. Não tinha como não aceitar viver esta onda por dois dias. Nem os problemas na camionete antiga diminuíam nosso humor, e nada que os parafusos que carregava na bici não fossem capaz de resolver.

O ritmo em que viajavam era mais lento que o meu em bicicleta, e chegando ao Hoyo decidi seguir o pedaleio. Não antes de conhecer o contato dos Ser Semillas na zona, a rádio comunitária FM Alas, e um pouco de sua história, repleta de boa música e em defesa do patrimônio natural de todos. Até uma rápida entrevista dei a rádio. Mas era hora de chegar ao fim desta longa etapa, e estava determinado há neste mesmo dia percorrer os 160 km que me afastavam de Bariloche.

Foi um longo, molhado e gelado dia. Encontrei no caminho o alemão Michael, que com sua enorme e desorganizada bicicleta vem viajando a 4 anos pelo mundo (www.mike-on-bike.de). Subi parte do passo Steffens no maior papo com ele, até deixá-lo para trás quando caiu à noite. Já havia percorrido mais de 100 km e sentia as pernas cansadas, mas me sentia cada vez mais determinado em chegar neste dia, estar com os amigos, e não precisar mover-me no dia seguinte, custasse o que custasse. Por sorte a chuva acalmou depois de vila Marcardi. A enorme lua se destapou e iluminou o lago Mascardi e todas as montanhas cheias de neve da região, e cada vez mais motivado via a estrada ficar para trás. Entao alcancei o lago Gutierrez, desci a sua margem até vila dos Coihues, peguei a estrada antiga para o cerro Cathedral e não me acreditei quando caí no km 10 da Avenida Bustillo, às margens do grande lago Nahuel Huapi. Estava arrepiado por ter vencido este duro e último dia desta grande etapa em alto estilo, e antes que imaginei, às 9 horas da noite, em um estado lastimável, estava sendo novamente recebido no Hormigueiro, por Maty, Laura e Camila. Uma satisfação e um momento único, a recompensa por todo e qualquer sacrifício dos últimos meses. Um banho e uma comida quente e agora era só relaxar.

De El Chaltén pelo lago do Deserto e lago O´Higgins até o início da carreteira austral



Com o dia de céu azul era hora de partir. O tempo que tardaria até a subida do sufoco, parte da trilha do lago do deserto que é mais crítica para acúmulo de neve, seria suficiente para derretê-la um pouco e facilitar a passagem com a bici carregada.

Tardei algumas horas para percorrer os 50 kms do precioso caminho até o lago, parando a todo instante maravilhado com a paisagem, do Fitz Roy mudando de forma a ser visto dos mais diversos ângulos em contraste com os cristalinos rios da região. A ponte para cruzar a desembocadura do lago e atingir o início da trilha estava quebrada, e tive que cruzar por duas vezes com água na barriga o congelante rio. Os turistas encasacados até os olhos não acreditavam que eu estava me metendo aí.


 
Logo consegui me aquecer e iniciar o caminho, que se mostrou já nos primeiros metros, com suas empinadas e obstruídas encostas. Tive que desarmar tudo e portear parte a parte toda a carga e bicicleta, quilômetro a quilômetro, me custando muito tempo e esforço. Logo o caminho se mostrou mais razoável para trekking, mas não muito para uma bicicleta carregada com mais de 50 kg de carga e equipos para escalada. Adaptei a logística carregando uma pesada mochila e a bici com o menos peso possível, e com a beleza do conservado bosque e da paisagem que se mostrava vez ou outra, fui avançando sem parar ganhando preciosos quilômetros. Já sentia que minhas forças se iam e sacava energia não sei de onde para vencer longas e acidentadas encostas. Entrei noite à dentro e completamente esgotado consegui cruzar a parte mais dura da travessia, encontrando um bom lugar para bivaquear, com não muita neve e à beira de um rio.



Com as primeiras luzes já estava em atividade, desvendando o caminho entre meio metro de neve acumulada. No início da tarde estava alcançando a praia do lago do deserto e a aduana Argentina. Agora faltavam mais 15 kms de trilha até a fronteira dos países e o início do caminho rodável, o qual alcancei no fim da tarde depois de cruzar várias vezes rios e brejos quase congelados. Um caminho sinuoso e com muita lama e mais um bivaque na selvagem floresta. Antes do próximo meio dia estava diante da imensidão do verde lago O´higgins, no único porto de milhares de quilômetros quadrados em um lago que praticamente não existe navegação. Por sorte em dois dias chegaria o último barco da temporada, era só descansar e desfrutar da beleza desta remota paragem.


Aí encontrei outros viajantes que chegavam, o brasileiro Leandro e um francês que andavam em bicicleta e um Israelita que vinha à pata. Nos juntamos todos abrigados na casita do porto. E então veio o barco, momento esperado pela família e os carabineiros que aqui vivem isolados, e tem essa como uma ocasião especial. Por pouco não fui deixado pelo capitão, que se mostrou intransigente na negociação da abusiva taxa para embarcar e que na realidade é custeada pelo governo. Para minha sorte e com a pressão dos meus novos amigos e dos tripulantes, cedeu no último minuto.

Não acreditava que estava navegando neste lugar. Não bastasse só cruzar o lago para o outro lado, ainda o percorremos por todos os seus braços e entranhas, visitando cada um de pouco mais de meia dúzia dos isolados moradores, levando alimentos a seus animais para o início da crítica situação climática por está por vir. Fomos brindados com as mais lindas paisagens neste dia, e já não bastasse das montanhas e glaciares, ainda de um incrível pôr do sol patagônico.


Alcançamos terra novamente perto da ½ noite e alguns minutos estava instalado abaixo da primeira boa árvore que vi, à beira de um lindo braço do lago, para uma perfeita noite de sono. Me sentia contente e motivado, mesmo sabendo da dura fase que estava por vir, a travessia da dura carreteira austral. Era o próximo objetivo a buscar.

As mais incríveis montanhas - por El Chaltén


Era uma linda tarde de fim de março, sol fresco e vento forte, cores intensas de principio de outono, vegetação amarelada contrastando com o azul turquesa do lago argentino. Deixava para trás e na memória El Calafate e os lindos momentos vividos aí. Estava focado no próximo grande objetivo e talvez o maior de toda esta jornada, alcançar as mais incríveis torres de granito do planeta, em El Chaltén, 225 km adiante.

A motivação era intensa, seja pela boa onde de com quem estive nestes dias ou pelo sonho prestes a se realizar de estar diante da mais incrível manifestação da Terra. A lua cheia foi a energia extra para que sem perceber percorresse durante à noite mais da metade do caminho até o próximo destino. No dia seguinte, despertei de frente ao cerro Chaltén e Cerro Torre ao fundo do lago Viedma, não podia acreditar naquilo que estava vendo e vivendo. E esta paisagem foi o plano de fundo do largo dia, com as montanhas cada vez maiores, fazendo que o vento patagônico passasse despercebido diante de tamanho privilégio, e com os pêlos arrepiados e uma sorrisa larga eu alcançasse o povoado de El Chaltén perto da ½ noite. Uma linda dormida abaixo das estrelas na beira da ruta e estavam diante das magníficas montanhas banhadas pelo alaranjado sol do amanhecer.

Fui recebido pelos amigos bardos Juan, Luquita e Mudo em Aires Patagônicos, e depois de compartilhar conversas, histórias e informações entre uma cerveja e outra, estava instalado no que seria minha morada durante quase 1 mês, uma linda gruta de pedra com vista privilegiada do vale do rio de Las Vueltas.

Um pouco de tentativas de duros e lindos bolders e iniciei minha busca por parceria para subir e tentar alguma escalada pelas imponentes paredes das agulhas. É sempre um tema encontrar companheiro para escalar, ainda mais em um ambiente com tanto comprometimento e además em fim de temporada. Realmente me custou, mas num dia de caminhadas pelas lagunas conheci Assier, um Basco que viajava fazendo trekkings pela patagônia. De imediato aceitou meu convite a me acompanhar às montanhas, e por sua pouca experiência nestes ambientes, caberia a mim encabeçar as cordadas.

O outro tema de escalar na patagônia é o clima instável, onde as situações podem mudar do céu para o inferno em questão de minutos, com temporais que impedem qualquer ação e que já cobraram a vida de diversos escaladores. Mas antes do imaginado a neve e chuva deu lugar a um céu azul e calmo, e com a mochila com menos do necessário pronta já estávamos na ruta, e depois de uma bem vinda carona, caminhando rumo ao bivaque pedra negra. Aproximamos rápido e no fim da tarde estávamos diante das monstruosas paredes do Fitz, Mermoz e Guillomet, a qual seria nosso primeiro objetivo.

Me sentia como que possuído, numa mentalização muito forte da grande empreitada que estava por vir, aproximar e escalar os 600 metros de parede da via Founrouge, que conta com passos de até 6b+ em condições ambientais críticas. Pouco consegui dormir, e às 5 hrs da manha estava despertando meu companheiro. As condições de fim de temporada não eram nenhum pouco favoráveis, e até a base da parede tivemos que nadar na neve, que às vezes chegava na cintura e nos empapava por completo. Alguns largos de escalada mista em tênis e alcançamos rocha mais perfeita, mas com as fissuras difíceis de ser encontradas em meio a tanta neve. O sol começou a esquentar e a derreter a neve e o gelo, molhando o que ainda permanecia seco e despejando as estalactites que até então estavam colgadas às alturas. Seguia inspirado e guiando sem pensar, largo a largo, não me lembrava ou me importava dos dedos congelados, com a escalada em rocha molhada, do pesto que se armava no horizonte. Estava em um transe onde só me importava ir para cima, tudo fluía perfeito e me sentia mais forte do que nunca, como que se tivesse com uma armadura.

Mas Assier não se sentia nenhum pouco à vontade com a grande exposição que estávamos, e depois de insistir acabamos desistindo de alcançar o cume. Baixamos rapidamente e ainda era dia quando alcançamos o bivaque, um pouco frustrado mas feliz de ter provado tão intensa sensação, do poder que estas montanhas exercem sobre a mente sintonizando-a com o corpo do humano.

Baixamos e no outro dia estava de volta à minha morada e desfrutando do dia de meu aniversário escalando vias esportivas e em tradicional ao redor do povoado. Felicidade absoluta!

O prognóstico do clima apontava para uma melhora climática para os próximos dias e de imediato os planos estavam traçados, ousar tentar a escalada do linda “Claro de Luna” na agulha Saint Exupery, 800 metros de escalada perfeita. No outro dia estávamos partindo em mais uma longa jornada de aproximação. Cruzamos as tirolesas da laguna e o vidroso glaciar torre. O magnífico Cerro Torre se via perfeito e tranqüilo, como que descansando em seu trono e dando a licença para passarmos. Depois da longa travessia da morena estávamos instalados na beleza do bivaque Polacos. Aproveitamos a luz para reconhecer a delicada trepada até o pé de via e portear os equipamentos, facilitando a aproximação noturna do próximo dia.

Às 6 horas da manha estávamos em marcha e facilmente chegamos ao pé de via, tardando muito menos do imaginado e chegando em plena noite, já que nesta época o dia começa a clarear pelas 9 horas da manha. Dormimos um pouco e quando iniciou a penumbra começamos a escalar. Mais uma vez e agora com mais intensidade sentia uma sensação rara, uma força interna muito forte que me ligava com esta montanha. Já fazia tempo que havia esquecido meu nome ou quem eu era, os porquês da vida, o orgulho. Não pensava. Estava completamente focado e hipnotizado pela ascensão que estava realizando, e cada movimento era perfeito. Largo a largo ia limpando as fissuras de gelo e neve, protegendo, esquivando as pisadas da água e avançando como se fosse um ambiente há muito conhecido.

Já estávamos alto quando o Cerro Torre ganhou seus primeiros raios de luz e tudo que estava abaixo de nós ganhou dimensão. Junto começaram a surgir as dúvida de meu companheiro que não sentia esta mesma sensação e não conseguia desfrutar disto que estávamos realizando. Quis baixar e depois de resistir por alguns largos acabei cedendo. Desta vez não pude desfrutar da sensação que uma escalada alpina, ainda mais deste porte, é capaz de proporcionar ao espírito, quando corpo, mente e alma trabalham em perfeita sincronia para superar os cansaços físicos e mentais. Mas por outro lado estava feliz de estar ali naquele momento, nas altas entranhas daquela montanha, um lugar mágico e muito intenso, que parecia difícil de acreditar que era de verdade.

Custava entender que logo estaria de volta ao bivaque sem ter ido mais à fundo, mas a sacada dos cordines recém beck-upeados durante um rapel, não deixaria de dar uma mostra do que uma escalada como esta envolve. Por sorte e utilização de técnicas apropriadas, em algumas horas estávamos de volta ao bivaque em segurança, logo empreendendo o longo retorno ao povoado que nos tardou 10 horas.

Sabia que estava terminada definitivamente a temporada e as tentativas de grandes escalada, mas estava satisfeito com todas as sensações e lições que estas incríveis montanhas haviam me proporcionado. Um mito que se quebrou e tornou-se realidade.

Algumas escaladas esportivas e de bolders e se terminou a temporada. Abrigado em minha morada pude observar durante dias o simples, silencioso e lindo cair da neve, entre algumas aparições da lua e das estrelas. Era como a despedida, e agora sentia que seguir o caminho era o que devia fazer e era isto que me atraía mais que nada, bastava esperar pacientemente a hora de partir.

Escalada por El Calafate e O Glaciar Perito Moreno



Vivemos em um tempo da sociedade moderna onde os valores estão cada vez mais destorcidos e mascarados por riquezas que não nos levam a nada. As pessoas não cultivam mais e até esqueceram as maiores riquezas da vida. Esqueceram a natureza, que fornece tudo que necessitam, esqueceram a amizade, que gera harmonia e esqueceram a família, que traz a união e paz.

Quando se precisa e que vemos quem são os verdadeiros amigos, devemos guardá-los no lado esquerdo do peito - aprendendo com a intuição, com um simples “olhar” e compartilhando o que temos e os momentos vividos. Com este espírito fui recebido carinhosamente em El Calafate por Cardobês e pelos amigos Cuencas: Nico, Ramiro, Dani e Andy como um irmão de longa data que retorna ao lar.

Depois de um longo tempo vivendo quase como “selvagem” pelos caminhos dos Andes, estava novamente abrigado das intempéries em uma casa e com o conforto dos amigos. Uma ducha quente, uma cama, cozinhando em um fogão, sentado em uma cadeira... Muitas histórias vividas, risadas e conversas entre umas cervejas e outras.

Estava na bela e singular El Calafate. Cidade perdida em meio do desolado pampa da patagônia argentina banhada pelo azul turquesa do imenso lago e guardada por cerros, como o Calafate. A cidade que hoje têm 30.000 habitantes - há 30 anos era uma vila com suas mais de 20 casas. Habitavam o local umas poucas famílias de gaúchos em suas estâncias e compartilhava o lugar com os índios que viviam ali em covas de pedras há séculos. Ainda hoje é possível encontrar registros em desenhos em covas existentes na região. Estes índios foram induzidos ao “processo de civilização” depois de centenas de anos vivendo em harmonia com a natureza.

A primeira missão na cidade foi encontrar companhia para desfrutar das escaladas já que meus amigos Cuencas vinham trabalhando como loucos guiando turistas pelo glaciar Perito Moreno. Este glaciar de impressionante magnitude e beleza é a terceira maior massa de gelo do planeta. O campo de gelo sul, tornou Calafate na cidade que é hoje. O turismo sacou e vem sacando a oportunidade e tirando os valores das pessoas, que não mais tratam o próximo como um ser humano e, sim uma oportunidade e fonte para ganhos. Cada um por si, uma torre de babel. A ajuda ao próximo ou um simples saudar são gestos há tempos esquecidos.

Vindo de lugares onde o tratamento, a amizade, o companheirismos ainda são importantes, minhas energias espirituais foram pouco a pouco consumidas. Nada que dois dias de bolders en La Chala, aos pés do árido cerro Calafate, não fossem capazes de trazer de volta. Depois de provar alguns duros problemas, a companhia dos amigos, as noites de cerveja, pizzas, massas, tortas após seus expedientes complementava a que faltava.

Então veio a folga de Nico, estava motivado como uma criança e junto com Marcos e Carlos fomos às paredes do cerro Comissión. Escalamos talvez as vias mais lindas do local: rochas arenítica exuberante, diedros que exigem cuidados para se movimentar e que não te permitem sair do piso, fissuras perfeitas para colocar ferros e obrigam atenção redobrada no posicionamento em suas placas. Dia perfeito para escalada mesmo com o forte vento e frio. Nestas condições, cabeça e corpo entram em sintonia com a alma fazendo-o sentir o prazer de escalar.

De volta à cidade, a vontade de voltar a escalar era ainda maior. Quando encontrei parceiro não pude voltar ao cerro Comissión, em razão do preço de transporte estava abusivo - é difícil acreditar que você realmente está na América do Sul. Mesmo assim, segui na busca de novos parceiros, porém sem sucesso. Em compensação encontrei a boa onda de Jaime e da Cueva, ponto de encontro e parada de escaladores que vem realizar empreitada nesta região.

Então voltei ao próximo objetivo de estar aqui, ou seja, ver de perto e sentir toda magnitude do impressionante glaciar Perito Moreno. Bem que os amigos Cuencas tentaram de todas as formas conseguirem um meio para eu conhecer esta expressão da natureza. Infelizmente a máquina de sacar dinheiro não permitiu fazer nada. Então agi por conta própria e depois de um dia lutando por 80 km contra o forte vento através da costa do lindo e verde lago Argentino, estava diante dos morros. Agora, a nova missão era convencer a portaria do parque, serviço administrado por concessionário, a me deixar ingressar sem pagar a abusiva taxa de $80,00, ou ao menos pagar $ 70,00 como residente.

Os funcionários da concessionária que cuidam da portaria não deram a menor atenção às condições da viagem que eu realizava, muito menos pelo dia ventoso que enfrentei. Por eles daria meia volta e retornaria. Claro que contra isso eu usaria de métodos não convencionais. Não é possível ou concebível que um glaciar de milhões de anos e declarado como patrimônio da humanidade, seja restrito a elite. Por sorte existem guarda-parques com clara noção de conservação e em poucos minutos resolveram o problema – concederam-me um passe de isenção, inquietando os desinformados e sacanas porteiros.

Enfim estava dentro do Parque Nacional de Los Glaciares seguindo o canal dos Tempanos, um braço do lago Argentino metido na cordilheira. Foram mais 30 km de estrada de concreto de impressioar qualquer um, uma estrutura invejável até diante das melhores rodovias federais. Embora minhas queixas, por outro lado se tornaram entendíveis as abusivas taxas de ingresso. No caminho, encontrei Luis, um simpático ciclista argentino que está percorrendo todos os Parques Nacionais Argentinos http://www.cicloviajes.com/patago4.html.

Antes de dar de frente com o glaciar e cansado de um longo dia de atividade me meti ilegalmente na floresta à beira de um lindo rio. Sorte que estava com o fogareiro emprestado pelo Nico que me salvou a vida e pude cozinhar uma rica comida.

Então veio a luz do dia, e agora meu objetivo era subir os 1500 m de altitude do cerro Buenos Aires. Desvendando o melhor caminho em meio aos espinhentos calafates e todo furado alcancei o arenoso e nevado Filo Cumbrero. Deste local tem-se uma espetacular e única vista das nevadas montanhas da região e do majestoso glaciar Perito Moreno. Mais alguns minutos alcancei o pontiagudo, exposto e pouco ascendido cume e com o frio congelante me custou começar a descida. Depois de algumas horas desvendei um caminho que me levou de frente ao glaciar. Neste local tem um sistema de passarelas de primeiro mundo e te coloca de frente com os mais diversos ângulos desta grande expressão da natureza.

No seguinte dia fui convidado pelos amigos Cuenca a fazer uma caminhada de 7 horas sobre o glaciar - para quem paga custa em torno de $ 700,00. Esta caminhada deixa as pessoas que vivem na cidade muito impressionada. Um mundo desconhecido com lagunas de um azul impressionante e sumidouros sem fim.

Estive com um grupo de turistas que logo souberam da jornada que estava realizando, inclusive estava no grupo um brasileiro chamado Max. Cruzamos o canal de volta dentro do potente barco, tomando todo wiski e comendo todos os alfajores que podíamos. Em terra estava montado na bicicleta de novo. Feliz com o lindo dia e energizado pela amizade, somado com o alcool, refiz o caminho de 80 km em pouco mais de 2 horas. Impressionante como a boa onda gera motivação.

Depois de um dia de descanso e uma noite de festa, senti que era hora de partir. À luz do entardecer, seguida pela luz da lua, com a energia carregada e na mente as mais impressionantes demonstrações da natureza. Como se estivesse em transe, quando percebi já tinha passado da meia noite e percorrido mais de 100 km sobre a bici. Realmente é impressionante o poder que a Terra e a natureza em harmonia exercem sobre nós.

Sul do continente americano – De Punta Arenas através das Torres Del Paine até El Calafate



Fui recebido no porto de Punta Arenas por Andrés como se fosse amigo de longa data. Depois de um “city tour” pela bela cidade, uma visita ao mirante e ver a Terra do Fogo perder suas fortes cores laranjadas pelo dia que se findava e que deu para entender um pouco do porque do seu nome, fomos à sua casa, brindamos uma rica cerveja e um jantar.

Na bicicletaria de Cláudio fui recebido muito bem e não precisei fazer nada. Trocou quase todos os raios num trabalho muito profissional, uma ajuda para a minha viajem. Como o vento soprava em torno dos 100 km/h, aproveitei o convite de Andres para descansar mais um dia em sua casa. Mas o conforto logo acabou e fui dar a cara ao vento, que em alguns momentos me impediu de avançar - às vezes passando horas pedalando a 3 a 4 km/h. Empurrar era impossível. O vento seguiu impiedoso por dias através do desolado pampa, como que me colocando à prova: Estava realmente disposto enfrentar tudo isso? Quando reagia com bravura e sangue nos olhos, era tirado ao chão. Passei a buscar um meio termo entre desmotivação e excesso de forca de vontade. Com muita paciência alcancei Porto Natales. Passei de largo, depois de sentir a indiferença e contaminação das pessoas, onde o turismo acabou com verdadeira essência da convivëncia e passam a se preocupar mais com o dinheiro a um simples saudar ou, um sorriso no rosto.

Se o vento já estava forte durante estes dias, não sabia o que estava por vir nesta tarde - um vendaval que facilmente superavam os 100 km/h com rajadas que impossibilitavam manter-se em pé. Depois de vencer 12 km em 3 horas, parei ao escurecer em uma Estância para tentar me abrigar. Fui recebido com amabilidade pela família do Oliver e prontamente me serviram uma seqüência de saborosas comidas à beira da calefação. Até eles que vivem nesta zona de ventos estavam assustados com sua fúria neste dia. Custou-me ir-me embora, mas a vontade de chegar as Torres Del Paine superou qualquer necessidade de descanso.

Diante da impossibilidade de progredir com os ventos furiosos e somados as tormentas, tive que me abrigar num belo bosque encontrado a beira do lago Porteño. Neste ótimo lugar aproveitei para descansar e concentrar energias. Mais uma vez voltei ao modo antigo, cozinhando com fogo quando o clima ou o lugar permitia. Para completar, depois de todos os problemas possíveis meu fogareiro não funcionou mais.

Depois de um dia parado necessitava entrar em ação novamente e assim o fiz, mesmo com chuva, vento e o grande frio. A idéia era entrar à noite no Parque Nacional das Torres Del Paine. Tentei esperar o pessoal da portaria sair, para me livrar de pagar a taxa abusiva de $ 15,00 (R$ 75,00). Não suportando o frio e depois de estar parado por muito tempo, fui assim mesmo com todas as desculpas na cabeça. Mas no estado em que cheguei, completamente ensopado, tremendo de frio e lutando com um vento alucinado, qualquer ser com o mínimo de coração me deixaria passar.

Custei ainda para chegar ao primeiro lugar onde poderia me abrigar, e às nove da noite, doído de tanta câimbra de frio, alcancei um bosque em meio ao inóspito pampa, onde os carabineiros me ofereceram um chá quente e me permitiram acampar irregularmente por ali, sem poder fazer fogo. Depois de comer qualquer coisa passei à noite segurando a barraca para não voar com o vento e chuva.

A chuva deu sua trégua. Com roupas molhadas, frio e vento pude avançar contornando lagos, montanhas, em meio a animais selvagens e flora adaptada ao vento e uma paisagem deslumbrante. Quando a natureza nos coloca no nosso lugar se pode sentir com intensidade toda a nossa pequenez - uma forma de viver, impossível de descrever. Depois de muitas caminhadas e muitas horas de contemplação a um dos maiores espetáculos da Terra e admirar as monstruosas torres de granito, era hora de agradecer por todo este privilégio e ter sentido tudo isso na sua essência e partir. Infelizmente a rigorosidade chilena dificulta qualquer tentativa de ascensão a estas grandes paredes. Um dia ainda voltarei.

Entre tanta "mala" onda onde o turismo retira o valor interno das pessoas encontrei bons corações neste trecho do caminho - seja para me abrigar abaixo de um teto, cozinhar num fogão, ou compartilhar uma simples conversa.

Não pude cruzar o inabilitado passo Zamora para ir a El Calafate, na Argentina, que estava a menos de 100 km. Tive que dar uma volta de mais de 300 km numa luta árdua com o vento, muitas vezes sendo impossível se manter em pé e muito menos manter a bici. Foi aí que recebi um presente dos céus por tanto sacrifício, que num belo dia o vento me empurrou, em alguns momentos a mais de 50 km/h percorrendo 170 km em 7 horas por inóspitos desertos.

Com a felicidade estampada no rosto me dirigi a El Calafate e a casa do amigo Jorge Cordobês, onde enfim poderia descansar o corpo e a alma. Depois de 100 km a toda potência cheguei, não sem antes parar por quase hora, para apreciar emocionado a primeira vista do que para mim é a maior montanha do mundo - o grande Fitz Roy.

Entre escaladas no começo do mundo à travessia da áspera Tierra Del Fuego



Depois de muitos dias, mesmo quando se conta com meios modernos de locomoção, estava em Ushuaia, diante do incrível canal de Beagle, além do extremo sul do continente americano. Fui recebido com muita chuva, frio e vento, característicos desta região, que se não fosse pela sapiência humana a tornaria impossível a sobrevivência humana.

Mas logo tive o privilégio de receber as ótimas vindas - o sol apareceu e demonstrou a grandiosidade deste lugar, formado e deformado há milênios por força internas da terra e pelos glaciares que cobriam tudo. Logo conheci os escaladores Pepe e Lucho e de imediato fui convidado ao aconchego da casa de sua querida família para comer pizzas, tomar cervejas e abandonando o gelado bosque que foi a minha primeira morada. Sebastián logo se juntou a nós e no outro dia já estávamos escalando no vale de La Tatta na presença do grande monte Oliva, lindas vias desplomadas em basalto muito bem encontradas pelos aberturistas em meio à grande quantidade de rochas podres.

No outro dia nos dirigíamos ao Parque Nacional de La Tierra Del Fuego, restrito a elite, onde foi necessário utilizar de técnicas a “La brasileira” para driblar as abusivas taxas de entrada de um patrimônio da humanidade que deveria ser acessível a todos os amantes da natureza,. Logo estávamos em Ensenada e de aí a preciosa Bahia Cucharita, depois de certo dificuldade para cruzar com as bicis a acidentada escarpa que dá acesso. Aí me deparei com a forca de vontade de Pepe, um jovem forte e motivado de apenas 17 anos.

Logo estávamos instalados aos pés das paredes magmáticas, bebendo água de brejo e nos cagando de rir. Os ventos uivantes, os chuviscos e duro frio não nos impediram de escalar dois dias a pleno, vias esportivas realmente belas de até 6c+ (grau máximo no setor), algumas com seqüência de quatro pequenos tetos e muito exigentes aos bracitos desacostumados.

Logo estávamos de volta ao calor da casa desfrutando de um belo assado de cordeiro preparado por Negro, pai de Pepe. Era hora de partir e depois de um belo carregamento de mantimentos, aproveitando a zona livre de muitos impostos, estava serpenteando entre às imponentes montanhas. Não deixei de aproveitar a escalada existente no caminho: a incrível pedra barco setor de bolders incríveis. À noite Pepe e Seba se juntaram a mim e passamos parte do dia seguinte provando variadas linhas, algumas encantadoras, que desta vez não permitiram a ascensão, mas que valeram por deixar a beleza e a pureza da escalada gravadas na mente e nas juntas.

Depois de um abraço de despedida nos separamos, eu ao norte e eles ao sul de volta a Ushuaia. O belo sol repentinamente deu espaço a uma incomoda e fria chuva. Logo venci a longa encosta e o passo Garibaldi, não sem antes parar a ser saudado por Kayo (www.kayenaventura.com). Além do passo se descortinou o imenso lago Fagnano. Segui ate seu fim para relaxar a beira da laguna Del Índio.

O vento, enfim e infelizmente, deu sua cara tornando a pedalada dura e o avanço lento, em alguns momentos a menos de cinco km/h, mas com a recompensa de estar diante do encantador oceano atlântico e sua desértica costa. Quando se iam às forcas começou uma luta infernal com o corpo - uma enorme estância chamada Viamonte apareceu no horizonte, lugar para conseguir água e preparar uma comida recompostora. Prontamente fui recebido por Tomas, um dos encarregados, que depois de colocar no lixo um cachorro do mato morto por uma pedrada me levou ao refeitório onde fui amavelmente recebido pelo cozinheiro Antônio e pelos autênticos gaúchos que jantavam um bom guiso.

A aparência e vestimentas demonstravam a fidelidade à tradição, bombachas, botas, coletes de lã, lenços no pescoço, boinas na cabeça. Com humildade e com a aparência desgastada de um largo dia, logo conquistei respeito até dos olhos analistas e do olhar profundo de um dos capatazes. Melhor ainda do imaginado, logo me mostraram uma enorme casa onde eu poderia passar à noite, onde havia lenha para aquecer, água quente para tomar uma ducha - uma das primeiras do último mês, que não em gélidos lagos. Aí fui e encontrei um espaço abaixo da torneira, em meio a porcos e cordeiros recém mortos e sangue por todos os lados. Mas foi um delicioso banho de torneira ao som da agonia de porcos sendo mortos.

Depois de uma noite calorosa à beira do fogão, acordei com as primeiras luzes do dia e logo estava na estrada avançando ao norte pela Ruta 3. Enfim saí do pavimento dobrando na desconhecida Ruta b, em direção ao passo de fronteira Bellavista. Um, dos três carros que passaram por mim durante o dia, me disseram que hoje era meu dia de sorte e que, era para aproveitar o ameno vento que sempre é de romper a cabeça por aqui. Enormes Condores me acompanhavam de perto pelo desolado caminho através do pampa. Logo se descortinou no horizonte a beleza dos nevados da cordilheira Darwin como do grande monte Sarmiento.

Alcancei depois de um largo e duro dia chegar à aduana, onde a Gendarmeria (polícia federal argentina) só faltou me receber com festa, pois era um dos primeiros a passar por aqui nos últimos dias. Falou-me que me carimbava o passaporte de saída da Argentina se eu pudesse cruzar o rio com quase 1 metro de profundidade e limite com Chile. Disse que voltar não iria e assim me timbrou, se despedindo como alguém que não vê gente há muito tempo. No Chile, no pampa Guanaco, Camelídeos vivem em grandes manadas. Fui recebido com a mesma cordialidade - café quente e pão com ovos.

Onde o insólito pampa dava lugar a floresta surgiu Russfin, um pequeno povoado com meia dúzias de casas, a metade em ruínas à beira de uma serraria com aparência próxima extinção. Vi um senhor sentado, aproveitando o pouco calor do sol, aparentemente raro por aqui. Fui-lhe pedir água para cozinhar à noite e custou a entender de onde eu vinha. Com somente um olho, o outro provavelmente afetado por seu duro trabalho, se levantou e sem dizer uma palavra meteu o bidom num grande barril, com quase mais moscas que água, e o encheu. Muito agradecido segui, e os poucos bosques que encontrei para me abrigar do forte vento e da chuva que se armava, estavam cercados, assim como as raras casas sempre abandonadas.

Abaixo de chuva alcancei a Bahia Inútil e Camerón, que como cidade só existe no mapa. Segui passando por algumas estâncias abandonadas e lutando com a aspereza do clima, correndo contra o tempo para alcançar tomar o último barco que sairia em dois dias do povoado de Porvenir. Enfim, a muito custo e madrugando, com meia dúzia de raios da roda traseira rompidos, cheguei 3 horas antes de zarpar. Aproveitei o pouco tempo e aceitei o convite de um beudinho, Sr. Luis Mario, para comer uma carne gelada em sua humilde casa. Emocionando ao final, além do vinho, por ter alguém para fazer companhia por um momento sequer.

Cheguei ao porto alguns minutos antes do barco partir, realizado e me sentindo mais vivo do que nunca. Diante das grandes provações que me dispus a enfrentar perante a natureza bruta desta região, recompensado pelos mais belos e simples presentes da vida, desde um abraço de um amigo ate a beleza desta paisagem encantadora. Depois de terminada a travessia da ilha da Terra do Fogo, entramos no segundo ano sobre a bicicleta e mais de 11.000 Km percorridos, sentindo cada vez mais forte esta energia inexplicável e arrepiante.

Ainda tive o privilégio de conhecer na travessia dois motoqueiros de Buenos Aires e também Fernando, que está assumindo com muito profissionalismo a pesqueira de seu pai, em Porvenir. Este, em poucos minutos, me conseguiu um lugar para descansar em Punta Arenas e onde consertar a roda da Negrita.

Tardamos quase 3 horas para cruzar o passo largo do estreito de Magalhães, enfrentando vento forte e um agitado mar de azul profundo com suas grandes ondas - imaginando como foi cruzar este longo estreito sem passar pelos mares mais bravios do mundo pelos primeiros que se meteram aqui com seus rústicos barcos. Isto numa época quando tudo isso aqui era mais selvagem, onde haviam somente índios que, “sabe-se lá” como chegaram aqui para habitar com muito custo estas terras. Assim a ilha da Terra do Fogo (ou do vento) ficou para trás, deixando uma rica experiência e aprendizado que para sempre estará gravada na mente.

A caminho do mundo austral



Muitas vezes nos perguntamos quais as razões que nos levam ao desconhecido limite de nossas capacidades físicas e psicológicas. Na maioria parecem incompreensíveis, mas se nos adentrarmos a nossa essência interior começamos a perceber que os motivos, que nos faz cada vez mais estar nesta busca árdua, vão alem da nossa intuição ou do destino de nossas vidas e, nos coloca diante dos mistérios e da beleza da vida, que faz o sangue correr, os pelos se arrepiarem, as lagrimas caírem e o coração bater forte, nos fazendo sentir mais vivos do que nunca.

Foi assim que decidi me lançar no prosseguimento desta grande e árdua empreitada através das terras mais selvagens e impressionantes da America do sul, percorrendo solitário e de bicicleta os mais remotos caminhos possíveis de toda a extensão da cordilheira dos Andes, escalando a maioria das paredes rochosas e montanhas desta monstruosa cadeia - sem nenhum apoio logístico, o mínimo recurso econômico e carregando todos os equipamentos e viveres necessários, que muitas vezes chegam a pesar mais de 80 kg.

Com o apoio da família, de amigos, uma ajuda de custo e de equipamentos da equipe do Território mountain shop, novos e exclusivos alforjes e mochila do Alto Estilo e Alpamayo confeccionados nas horas de folga por Chiquinho e Chica, de novas peças e um afiado trato na Negrita madrugada adentro por Ivo Siebert e o pessoal da Pedale bikes, não havia mais retorno. Depois de algumas semanas de intensa correria, estava embarcando rumo a Patagônia e a America austral.

Em 3 dias, depois de cruzar o sul do Brasil e o pampa Argentina, estava pisando em Bariloche para encontrar com os amigos e irmãos de alma, Turco e Flori, e juntos irmos desfrutar as mais belas e incríveis escaladas nas Agulhas e figuras perfeitas do Cerro Cathedral. No Hormigueiro fui prontamente recebido com amabilidade por Mattias, Laura, Hormiga, sua irmã, Chiro e Seba. La estava novamente de volta ao aconchego dos bosques aos pés das laranjadas Agulhas graníticas em companhia dos amigos, aos quais, como sempre ai, se juntaram a paz de Roger, Guga e Leticia, e posteriormente Dani, Edu e Luana.

Com Turco e Flori de imediato fomos ao sonho da via, a qual com Tomy e Flora estivemos na temporada passada, e ao objetivo Luna na Agulha Cohete Lunar - via de beleza e qualidade indescritível: com contornos de pequenos tetos, dufflers aéreos, placas verticais e com refletes moldados pelo tempo. Seguindo fomos a agulha M2 e Abuelo onde nos encontramos com Hormiga e Chiro que recém abortavam a missão de instalar uma extensa “Highline” entre as Agulhas, devido a condições de vento.

Turco e Flori se foram em busca de seus objetivos - alcançar em bici Cochamo. Fiquei ali com os brasileiros e dias de tormenta se seguiram e deram espaço ao pacífico sonido da neve caindo, acumulando em grande quantidade no acampamento. Dias metidos na choca, de “engorda” ao alto estilo e recheada de ricas iguarias acompanhadas de toros e mariposas, para os quais não faltou disposição para os bate-volta na cidade.

Enfim o sol deu as caras e como alucinados estávamos de volta às paredes, sem tomar muito conhecimento dos ventos e o frio patagônicos. Escalamos algumas das melhores vias das Agulhas durante os bons dias que se seguiram: como Apriendendo a Volar, On March Sur La Lune, Bananarama, e reinstalados na cova do Oasis campanille, também logramos as incríveis Descanse em Paz, Fonrouge Bertoncelj, Califa Fossil e Imaginate.

Com a cabeça feita, espírito realizado e depois de sentir a paz da montanha e toda sua inspiração, estava na hora de ir adiante. Motivacao estas montanhas propiciaram de sobra.

De volta a Bariloche e no Hormigueiro para compartilhar as amizades, agora tambem com a presença de Alejandro e Maria, entre um assado e outro, tambem pude presenciar o erigir da casa inteligente que estão construindo e, me chamou a atenção a isolação de suas paredes a base de fardos de aveia. Tambem pude ajudar um pouco na construção de forno de barro custo zero. Aproveitando minha presença na cidade, tambem fui saudar os grandes e queridos amigos Jordi, Mariana e o prestes a vir ao mundo, Gerônimo.

A pesar do apego com todos estes lindos corações humanos estava na hora, a muito custo, de buscar o foco e concentração para botar os pés e as rodas nos caminhos da verdadeira vida. Quando vi, estava embarcando ao reinicio físico desta grande empreitada, a ilha da Terra do Fogo e Ushuaia.

De volta as terras patagônicas a ao mundo austral

Pessoas queridas que acompanham o blog!

A ciclo escalada já atinge cerca dos 11.000 km pedalados e recem cheguei a El Calafate. A zona percorrida deste Ushuaia é de uma paisagem estonteante, mais ainda selvagem e áspera para este tipo de viagem, principalmente com relaçao a instabilidade climática.

Infelizmente pelo ritmo que vem sendo tocada a empreitada e as passadas de largo nas cidades, e por esta zona ser extremamente turística onde os custos sao abusivos, nao tive acesso a computadores pelo elevado custo, o que pelo momento impossibilita a atualizaçao do blog.

Queria agradecer a todos que acompanham e que assim que possível estarei subindo novas fotos e postagens de tudo que se passou até aqui.

Um forte abraço a todos e nunca se deixem de lavantar quando os barreiras impostas para se alcançar os objetivo de suas vidas le derrubarem.